Não pode ter quadrinhos com canhotos

       Os canhotos historicamente sempre foram marginalizados pela sociedade. Existiram períodos que sofriam agressões físicas para corrigir seu mau hábito. Foram acusados de possessão demoníaca e até pacto com o diabo.

Muitas vezes os canhotos eram humilhados publicamente para que sua terrível anomalia fosse cada vez mais objeto de escárnio pela comunidade. Algumas pessoas foram parar nas fogueiras da Inquisição pelo fato de serem canhotas.

Existem mais de 100 referências na Bíblia em que o lado direito é melhor que o lado esquerdo. Além disso, as poucas vezes e que a mão esquerda é referenciada pelo livro sagrado dos cristãos, é de maneira negativa.

No latim a palavra ‘sinistro’, aquele que usa preferencialmente a mão esquerda, diz-se de pessoa ‘esquerdo’, canhoto – ao contrário de destro -, é também referenciado a funesto, agourento, aquele que pressagia a morte ou que traz consigo desventuras e desgraças.

Ser canhoto já foi considerado egodistonia, que é uma patologia por força do sofrimento subjetivo de uma pessoa pela falta de sintonia entre o quê o corpo e a psique impõem, contrariando o que é de entendimento, ou determinação, cultural, social e até religiosa da sociedade.

Apesar disto tudo, em torno de 10% da humanidade teima em ser canhota, indo de contra bases cientificas de antropólogos, neurologistas e até geneticistas. Além desses canhotos e canhotas assumidos, temos os ambidestros, aqueles que conseguem habilmente usar os dois lados. Mas, quando identificados, sempre são lembrados pelo seu lado ‘sinistro’, e não por sua ‘destreza’.

Eu tenho um filho canhoto que tem 9 anos de idade. Fico imaginando se ele tivesse nascido em outra época. O que poderia passar pelo simples fato de seu cérebro controlar de maneira diferente, da maioria das pessoas, uma função motora. Graças a Deus ele nasceu em outros tempos.

Nada é mais importante na minha vida do que ver meu filho feliz, ele pode ser canhoto ou não, então não admitiria de forma alguma que ele passasse por algum tipo de humilhação, que a sociedade o classifique como anormal, que venha a constrangido ou que sofra alguma violência por ser canhoto. E sempre o amarei independente de ele escrever com a mão direita ou com a mão esquerda.

Então todas as pessoas que tem filhas ou filhos canhotos devem ter a compreensão de como absurdo, tanto moral quanto legalmente, é a imposição da cura dos canhotos. Não se cura aquilo que não é doença. Não se conserta o que é próprio do sujeito.

Minha opinião é que aqueles que querem curar os canhotos se veem refletidos neles. Como não conseguem romper com seu sofrimento interno, tentam infringir nas outras pessoas, a mesma, ou pior, amargura que tem em seus corações vazios.

Evidente também que existe aqueles que por serem completamente sem conteúdo, compõem uma horda de imbecis pela cura dos canhotos, no afã de se fazer – nem que seja por alguns segundos -, visíveis em alguma rede social de internet.

Entretanto existem os piores, aqueles que calculam o quanto podem ganhar de seguidores, votos e dinheiro impondo a cura dos canhotos, como o prefeito do Rio, o Bispo Crivella, que recorreu a polêmica para chamar atenção para seu governo inoperante, tentando esconder a sua incompetência atrás da polêmica.

Este texto foi feito em resposta ao medieval juiz inquisitório Waldemar Cláudio de Carvalho, do Distrito Federal, que concedeu uma liminar que, na prática, determina que o Conselho Federal de Psicologia (CFP) altere a interpretação de suas normas de forma a não impedir os profissionais “de promoverem estudos ou atendimento profissional, de forma reservada, pertinente à (re)orientação sexual, garantindo-lhes, assim, a plena liberdade científica acerca da matéria, sem qualquer censura ou necessidade de licença prévia”. Mas acho pertinente a sua divulgação para que pensemos esta dinâmica de retrocesso e não cheguemos ao absurdo de censurar novamente que as pessoas escrevam com a mão esquerda! Este texto foi originalmente publicado como “A cura dos canhotos”, em 2017.
Por fim. O que me cabe afirmar é que continuarei amando meu filho por ser canhoto, o que, aliás, hoje se atribui até uma maior inteligência para as pessoas que utilizam mais a mão esquerda. Também não vou admitir, em nenhum momento, que ele tenha qualquer tipo de sofrimento ou tentativa de cura. Seja por ser canhoto ou, no futuro, pela sua afetividade ao próximo.

– Adriano Dias é jornalista e fundador da #ComCausa

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