Por uma Pátria de bons pais e mães

*Miguel Lucena

Conversava hoje com o sociólogo e psicanalista Antonio Flávio Testa sobre a violência no Brasil e as saídas possíveis. Concluímos que nada adiantará se, ao lado das medidas tradicionais de combate ao crime organizado, o Estado brasileiro não investir pesado na primeira infância, fase em que os problemas de abuso e abandono se refletem mais adiante em incivilidades, degradação e morte.
O Atlas da Violência, desenvolvido pelo Instituto de Pesquisa Econômica aplicada (IPEA) e Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FPSP), mostra que o Brasil atingiu em 2014 o recorde de 59.627 homicídios, média de 29,1 para cada grupo de 100 mil habitantes, superando a marca anterior de 26,5. No mundo, os homicídios representam cerca de 10% de todas as mortes, e, em números absolutos, o Brasil lidera a lista desse tipo de crime.
O estudo mostra que 46,9% dos homens que morrem entre os 15 e os 29 anos são vítimas de homicídio. O número salta para 53% quando são jovens de 15 a 19 anos. Jovens negros e com baixa escolaridade são as principais vítimas.
Por questões políticas, tende-se a culpar o racismo por essa carnificina, como se culpa o machismo pelas mortes de mulheres, porém, se pararmos nessas categorizações, o espetáculo dantesco continuará, porque, por exemplo, se a criança for negra, bem de vida e bem cuidada, certamente ela não entrará nas estatísticas mencionadas.
Donald Woods Winnicott, pediatra e psicanalista inglês (Plymouth, 7 de abril de 1896 — 28 de janeiro, 1971), identificou na falta de cuidados ou no excesso de rigor na primeira infância os distúrbios que acompanham o ser humano por toda a vida, como a submissão, o fingimento, o narcisismo e até a sociopatia, o que pode explicar a existência de tantos jovens transtornados, drogados e desembestados, sem freios morais, sem mãe nem pai.
A infância cresce abandonada em decorrência dos cuidados precários da mãe – que tem de largar os filhos para ganhar a vida ou fazer outras coisas, como usar drogas – e da ausência do pai, porque, desde o início da história do Brasil pós-1500, foram as mães que assumiram seus filhos.
O assunto é tratado por Roberto Gambini, na obra Espelho Índio, na qual ele mostra que parcelas significativas dos brasileiros cresceu sem ter direito ao pai.
Quando os portugueses chegaram ao Brasil, o papa lançou uma bula declarando que não havia pecado debaixo da Linha do Equador, os colonizadores passaram a fazer filhos nas índias e estas eram rejeitadas pelas tribos, por terem se tornado impuras, sendo então cuidadas pelos jesuítas. As crianças cresciam sem conhecer o pai.
Cem anos depois, com a chegada dos africanos, os portugueses também fizeram muitos filhos com as negras, sem que essas crianças tivessem direito a um pai.
Os brasileiros, de verdade, que conheceram pai e mãe, foram os filhos de negros com índios, os mamelucos, e depois os mestiços que se sucederam. Claro que os filhos de brancos com brancas, na época, também eram brasileiros e conheceram seus pais, no entanto aquela parcela que chorou e o pai não ouviu nunca mais se livrou da mágoa infinda.
Muitas das crianças que se tornam jovens violentos também não vêm tendo o direito ao pai, seja porque a mãe engravida de qualquer jeito, muitas vezes precocemente, ou porque o homem desaparece após um relacionamento furtivo e irresponsável.
De todo modo, o Estado precisa intervir, com a criação de núcleos de proteção à infância que funcionem de verdade como um programa de proteção à família, com equipes multidisciplinares para orientar, prevenir e cuidar das mães e das crianças, antes que estas atinjam a idade escolar.
Assim, evita-se que as escolas se transformem em depósitos de crianças atormentadas e indisciplinadas, dadas a atos de incivilidade, intolerância e revolta, e passem a ser centros de formação de bons cidadãos numa pátria verdadeira de bons pais e mães.

 

*Miguel Lucena é jornalista e delegado da Polícia Civil do Distrito Federal.

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