Um olhar para o século XX

No fim do ano de 2003, depois de passar meses trabalhando em relançamentos de discos valiosos de décadas anteriores, selecionando repertório ou escrevendo textos para encarte, uma ideia me veio clara à cabeça: a Música Popular no Brasil tinha ficado no século XX. Quando contei a amigos da música sobre minha conclusão fui tachado de pessimista, fatalista, etc. mas, aos poucos, mesmo os mais refratários foram concordando com a ideia, que parecia tão estranha à primeira vista.
Para um curtidor de música atual avaliar o que foi a onda da MPB nos anos 1970, vou pinçar um exemplo artisticamente incrível: o primeiro Lp do João Bosco, lançado em 1973, que leva apenas o nome do artista e tem na capa um desenho de Carlos Scliar e na contracapa um comentário de Tom Jobim. O Lp foi gravado no Rio com orquestra e arranjos de Luiz Eça, mas a cúpula da RCA achou que podia ficar melhor e 6 das 11 faixas foram refeitas em São Paulo, igualmente com orquestra por Rogério Duprat. Isso no disco de estreia de um artista que ainda não tinha o apelo popular que viria com os sambas em parceria com Aldir Blanc, a partir do segundo Lp. Parece incrível mas naquele momento se cruzavam fatos que tornaram possível essa estreia luxuosa. O mercado fonográfico brasileiro faturava como nunca e olha que um Lp custava em média 10% do salário mínimo. Outro fator era a renúncia fiscal do ICM (na época ainda sem o “S”). Parte do que era gasto em cachês artísticos na produção de uma gravação se transformava em crédito de imposto para as gravadoras. Em suma, parte do custo era risco, parte voltava na certa.
Se a cadeia produtiva estava tão azeitada, o lado criativo era instado a fornecer mais e de melhor qualidade. O ambiente artístico puxava pra cima e o clima político dava àquela música um caráter cívico, funcionando como um bálsamo para os dissabores da ditadura.
Mas nem tudo era MPB e o rádio e a TV não se abriam tão fácil. Os segmentos populares cresciam e alguns se sofisticavam, como o caso do pop e do samba, em paralelo a essa música intelectualizada, bem realizada e consumida por uma classe média minimamente esclarecida.
Passados 45 anos desde o exemplo que escolhi, como é o cenário? Uma indústria fonográfica que se desmaterializou junto com suas mídias. A via independente inviabilizada pela ganância dos editores. Um ambiente que puxa pra baixo e um clima político em que Chico Buarque é xingado na rua. A classe média universitária atual consome acriticamente. Não se pode esperar que, mesmo os artistas que se mantêm produtivos tenham um desempenho como antes, certo? Falei aqui de MPB, mas a crise se estende ao samba e a outros setores. O desmonte da cadeia produtiva acabou atrofiando a cadeia criativa.
Mas, para que serve essa reflexão? Aqui vai o ponto positivo e urgente. Como num caso de dependência, o primeiro passo é admitir o problema. Para que tenhamos um novo ciclo criativo em nossa música popular temos que olhar com carinho o século XX, tratando esse passado valoroso como matéria viva. Para isso temos aliados como o IMMuB, dentre outros. Por outro lado, precisamos de uma atitude crítica com a produção atual, deixando de lado adesismos que tentam engendrar valor artístico em lançamentos que são só marketing. Penso que, se fizermos a lição de casa, poderemos, daqui a 10, 20 anos, ter uma nova chance. Pelo que já tivemos, acho que vale a reflexão.

*Henrique Cazes – Músico e professor da Escola de Música da UFRJ.

error: Conteúdo protegido !!