Quatorze anos após ser acusada por lojistas de comprar com notas falsas, mulher ainda aguarda sentença e acredita que foi vítima de racismo

Janaina da Conceição: longa espera por justiça Foto: Maria Isabel Oliveira / Agência O Globo

Após dois dias comprando lingerie em Nova Friburgo para revender, Janaína da Conceição já deixava a cidade em seu carro, quando foi cercada por oito viaturas da polícia militar que a aguardavam na saída do município. Acusada por lojistas de utilizar notas falsas de R$ 100 durante as compras na cidade, a então revendedora passou todo o dia na 151ª DP (Nova Friburgo).

Janaína conseguiu provar, através de um gerente do banco, que as notas que possuía eram verdadeiras. Ela foi liberada da delegacia, mas decidiu entrar na Justiça com uma ação indenizatória por danos morais contra as duas lojas que a acusaram de comprar com essas notas falsas. O caso foi em agosto de 2007. O processo tem 13 anos, mas até hoje não houve sentença. E o pior: uma das notas de R$ 100 que foi apreendida e estava anexada ao processo desapareceu. 

O inquérito no Ministério Público Federal que investigava Janaína foi arquivado em 13 de dezembro de 2013, já que não foi identificado o autor do crime.

Janaína, que hoje tem 50 anos, conta que, passados tantos anos do ocorrido, ainda tem trauma:

— Depois disso, passei a comprar só com cartão, mesmo com dinheiro na mão. Isso tudo me causou um trauma. Também desisti de vender lingerie desde aquela época. Friburgo é o lugar mais barato para comprar peças de lingerie para revenda, mas eu nunca mais quis voltar à cidade.

Os dias na Região Serrana tinham tudo para ser agradáveis e de folga. Embora tivesse ido para comprar itens para trabalhar, Janaína estava com seu namorado na época e decidiu fazer um passeio por cidades vizinhas até chegar a Nova Friburgo.

Ela conta que sacou o dinheiro no banco, na cidade do Rio, e viajou em seu carro com a quantia em espécie. Esteve em Petrópolis e Teresópolis, até chegar a Nova Friburgo, onde ficou por dois dias fazendo compras para revender. Na época, além de vender de porta em porta, Janaína também trabalhava comercializando lingerie numa feira na Ilha do Governador, na Zona Norte.

 

— Estava com R$ 5 mil porque fui para comprar muita mercadoria. Trabalhava como sacoleira, mas tinha clientela fixa e também vendia na feira de Cocotá, na Ilha. Então, tinha para onde escoar as peças — afirma.

No dia que estava voltando para o Rio, Janaína lembra que chegou a comprar alguns itens que ainda faltavam. Na saída da cidade, se espantou com a quantidade de viaturas da polícia que faziam uma blitz no local.

— Já em Olaria, só tinha uma saída da cidade, vi o trânsito lento, aquele aparato, eram oito carros da polícia. Pensei que fosse uma blitz. Quando chegou nossa vez de passar, vimos que a polícia tinha cercado a cidade por nossa causa. Já tinham placa e cor do meu carro, minhas características físicas, apontaram armas, revistaram meu carro, jogaram tudo para fora. Não entendi nada. Parecia que estavam procurando um tipo de droga — lembra.

 

Só quando os policiais pediram para Janaína tirar a quantia que tinha no bolso, ela soube que estava sendo acusada de comprar com notas falsas. Os agentes pediram as cédulas:

— Não quis dar as cédulas porque fiquei com medo de colocarem uma nota falsa no meio e atribuírem a mim. Só na delegacia, quando pedi ao delegado para anotar o número de série de cada cédula, entreguei o dinheiro.

Segundo o processo, no banco, foi constatado que as notas eram verdadeiras, mas Janaína já tinha perdido todo o dia na delegacia. Ela também precisou provar que uma nota falsa que um dos comerciantes de Nova Friburgo atribuiu a ela foi recebida pela loja no dia em que ela ainda não estava na cidade.

— No dia que entregaram a nota a ela, eu não estava na cidade. Mas ela disse que tinha me reconhecido. Já saí da delegacia com a pressão alta, foi um constrangimento que nunca tinha passado. Fui uma atração negativa para a cidade — conta Janaína, que afirmou ter sido avisada sobre seu destino, caso o crime fosse comprovado: — Assim que cheguei lá, o delegado já foi me avisando que, se fosse falsa a nota, seria crime federal e eu seria conduzida para o presídio em Macaé. Eu chorava o tempo inteiro.

Racismo

Para Janaína, ela foi vítima de racismo por comerciantes da cidade:

— Houve um racismo, sim. Foi nítido. Na própria cidade, eu passava e as pessoas cochichavam. Teve uma comerciante que, quando me acusou na delegacia, antes de me ver falou: “É uma mulher preta. Está aí na cidade dando golpes há dois dias”. Ouvi aquilo e desabei a chorar.

Ubiratan Guedes, o advogado dela, também acha que sua cliente sofreu racismo:

— Será que ela foi a única que entrou naquela loja com nota de R$ 100? A gente sofre em determinadas ocasiões um preconceito velado que se chama desconfiança da pessoa, da atitude, de seus atos e gestos — afirma Ubiratan.

 

Em outra loja, Janaína foi questionada sobre a quantidade de peças que estava comprando, mas ela afirma que preferiu não dar atenção às indagações:

— Numa loja, me perguntaram: “Você tem grana para comprar?” Como eu via que estava chamando atenção por ser negra e com aquela quantidade de coisas, preferia fugir do assunto. Mas não estavam acostumados a ver uma negra comprando tanto assim, com poder aquisitivo tão alto.

Sumiço da nota

Outro fato curioso foi o sumiço de uma nota de R$ 100 que era de Janaína e estava anexada ao processo. Para ela, o desaparecimento da nota foi proposital.

— Para muitos, pode não ser nada. Para mim, foi muita coisa. A cidade parou para me prender e eu fui detida. Só conseguia enxergar que aquilo ocorreu pelo fato de eu ser uma negra.

Após o constrangimento, ela acha que o episódio a prejudicou também no mercado de trabalho.

— Sou contadora. Depois disso, tentei deixar currículos em bancos mas, acho que pelo fato de estar fichada, não me chamaram. Não consegui mais trabalhar. Só por conta própria.

 

Atualmente, Janaína está desempregada. Depois do fato em Nova Friburgo, continuou a trabalhar com moda, mas não vendeu mais lingerie. Depois, teve um box de roupas femininas, mas fechou em junho deste ano, depois de não resistir à pandemia.

— Como advogado, acho estranho esse processo não ter sido julgado. Causa surpresa não ter sido decidido, até agora, uma matéria tão simples. Não tem explicação plausível para isso — avalia Ubiratan.

Responsáveis por uma das lojas não quiseram comentar o caso e disseram preferir aguardar a decisão da Justiça. O GLOBO não conseguiu falar com a segunda loja que acusou Janaína.

Sindicância para apurar sumiço de nota

O Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro confirmou que a ação movida por Janaína segue em andamento. Disse ainda que, após o juiz determinar o envio de ofício ao Bradesco para informar se a nota descrita na perícia realizada pelo Instituto Criminal Carlos Éboli foi objeto de saque pela autora da ação em data anterior a 23 de agosto de 2007, a instituição bancária respondeu que só teria condições de pesquisar os movimentos realizados nos últimos cinco anos.

O juiz, então, solicitou manifestação das partes. Janaína pediu que a Justiça determinasse novamente que o banco fizesse a pesquisa. As partes rés não se manifestaram. O processo aguarda decisão do juiz.

 

A Justiça ressaltou que o processo tramitou sob a dependência da conclusão de inquérito policial presidido pela Delegacia da Polícia Federal de Macaé, em relação às denúncias de utilização de notas falsificadas de R$ 100.

Sobre o sumiço da cédula, objeto da ação movida pela autora, informou que o fato ocorreu no intervalo entre a perícia realizada pelo Instituto Criminal Carlos Éboli, no dia 30/01/2009, quando a nota foi declarada falsa, e a retirada da nota do Instituto, por representante da 151ª, em 29/04/2009. Devido ao extravio, foi aberta sindicância no âmbito da Polícia Civil.

Questionada, a Polícia Civil ainda não respondeu.

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