Coluna – Para uns, um avanço. Para outros, um tormento

Regra do desafio incomoda técnicos da NBA, mas também tem defensores

“Não acredito que isso esteja acrescentando nada ao jogo. Essa busca interminável pela perfeição é como correr atrás do próprio rabo. Os árbitros têm um trabalho muito difícil. Duas pessoas podem assistir a um replay e continuar discordando. Acho que estamos tentando o impossível”. Estas palavras poderiam ser de alguém que discute o impacto do árbitro de vídeo no futebol, mas elas foram proferidas por Steve Kerr, técnico do Golden State Warriors. Ele se referia àquela que é talvez a principal novidade técnica na temporada da NBA, o desafio do técnico. Os números dão a entender que ela tem sido bem-sucedida, mas é inegável que tem enlouquecido muitos treinadores no processo. Por mais que a tecnologia se insira cada vez mais no esporte, ainda são humanos que fazem o espetáculo funcionar. Assim, a polêmica sempre vai existir.

Depois de ser testado por dois anos na G-League, a liga de desenvolvimento da NBA, o desafio foi levado à liga mãe. Ele funciona da seguinte forma, cada técnico tem direito a desafiar uma marcação da arbitragem por jogo. Para isso, deve primeiro pedir um tempo técnico e girar um dos dedos, sinalizando o desafio. Deve fazer isso até 30 segundos após o lance em questão. Porém, ele não pode pedir revisão de qualquer jogada. Só é possível questionar o que foi efetivamente marcado. Ou seja, aqueles casos em que o árbitro “engoliu” o apito estão fora do radar. Ainda existe um segundo recorte. É possível analisar apenas três tipos de jogadas: Faltas marcadas (de ataque ou defesa), pé na linha limite da quadra (para determinar se o jogador estava dentro ou fora) e interferência/descendente (podendo retirar pontos de uma equipe em caso de marcação equivocada). Caso obtenha sucesso no desafio, o técnico recupera o tempo técnico que havia usado.

A última atualização divulgada pela liga* mostra que foram pedidos 240 desafios. No total, 108 marcações da arbitragem (45%) foram revertidas, o que denota um certo grau de sucesso. Nos bastidores, a impressão é de que a cúpula da NBA está satisfeita com os números, pelo fato de quase a metade dos desafios ter resultado em correções, ou seja, erros se transformaram em acertos. No entanto, o grande componente da equação que torna o assunto polêmico e tem desagradado os técnicos está justamente na parte humana. Eles podem dizer que a nova regra acaba alongando as partidas, mas no fundo o incômodo vem pela sensação de que, quando existe um confronto de opiniões, ela não tem sido tão efetiva. Um olhar mais profundo sobre os dados revela que a imensa maioria dos desafios (202) são pedidos em jogadas de faltas apitadas, justamente o tipo mais subjetivo de marcação. Como era de se esperar, entre as três possibilidades de lances a serem revistos, é o que tem menor índice de reversão, 41% (contra 70% em lances de pé na linha e 50% em interferências e bolas na descendente). Doc Rivers, técnico do Los Angeles Clippers, derrotado em um de seus desafios, esbravejou contra a arbitragem: “Ninguém quer estar errado”. Mas talvez os técnicos da NBA também não estejam admitindo que o próprio julgamento possa estar equivocado.

A novidade é bem-vista por quem vive o basquete daqui e acompanha o de lá. Léo Figueiró, recém-coroado campeão da Liga Sul-Americana com o Botafogo e que também faz parte da comissão técnica da seleção brasileira masculina, enxerga a inclusão da regra como mais um passo em busca de um esporte justo.

“Cada vez se investe mais dinheiro no esporte profissional. Os salários são mais altos, então, naturalmente, a cobrança também é muito maior. E onde a cobrança é maior, é preciso priorizar que os resultados sejam justos, que não haja nenhum tipo de injustiça por um erro humano, o que é normal, aliás”, diz.

O técnico da seleção feminina, José Neto, vai pelo mesmo caminho.

“O olho humano é passível de erros. Se temos um recurso para corrigir isso, deve ser usado. Vemos isso no tênis e no vôlei”, reitera.

Neto, de fato, está certo. No geral, a NBA já tem a possibilidade de revisão instantânea de uma jogada desde 2002 e foi gradativamente ampliando a área de atuação desses replays. Porém, com relação especificamente ao desafio, chegou mais tarde do que essas outras duas modalidades. A tecnologia hawk-eye (olho de águia) começou a ser utilizada em 2006 no tênis. O software foi aperfeiçoado ao longo dos últimos anos e hoje é praticamente impossível contestar o que o sistema aponta, até porque não há o elemento humano. A partir da análise de imagens de diversas câmeras em inúmeros ângulos, o computador estipula o local em que a bola tocou o chão. No vôlei, o desafio chegou mais recentemente, há cinco anos. São sete diferentes instâncias passíveis de revisão, quase todas envolvendo avaliação da localização da bola ou do jogador no momento em questão. No entanto, a tecnologia pode diferir dependendo da liga. A definição sobre a bola ter tocado o chão dentro ou fora da quadra, por exemplo, pode vir através do computador, como no tênis, ou da avaliação de imagens de televisão feitas a olho nu.

Giovane, técnico da equipe de vôlei do Sesc RJ, entende que o uso da tecnologia é um processo normal. Hoje, a dinâmica do desafio já está perfeitamente integrada ao jogo.

“O vôlei é um esporte de velocidade e precisão, então acaba precisando da revisão para que haja a marcação correta. Possíveis erros de marcação podem valer até mesmo uma vitória na partida, então o desafio minimiza esses problemas de certa maneira”, crê.

Tanto o tênis quanto o vôlei são esportes sem contato físico direto, ou seja, a principal fonte de polêmicas e discordância é subtraída da equação. Um paralelo mais fiel ao basquete pode vir do futebol. Embora ainda seja possível ver discussões de mesa redonda a respeito de impedimentos marcados ou não marcados, questões subjetivas como a intenção de colocar a mão na bola ou o grau de força em uma entrada que poderia gerar um pênalti ou mesmo até que ponto uma jogada anterior deve influenciar na anulação ou não de um gol são os temas que geram debates mais acalorados. 2019 foi o primeiro ano completo de utilização do VAR (árbitro de vídeo) no Brasil. Se comentaristas e torcedores ainda tentam digerir essa novidade, os técnicos, que estão entre os efetivamente afetados, já estão na fase de pensar em ajustes, em como melhorar o jogo usando a ferramenta. Eduardo Barroca dirigiu o Botafogo por 27 jogos na Série A e vê pontos positivos e negativos.

“A melhor parte é que os erros diminuíram absurdamente. Por outro lado, o tempo entre o chamado do VAR e a decisão é muito alto”, opina.

Barroca acredita que uma das soluções seria atribuir a responsabilidade de dar a última palavra ao árbitro de vídeo, evitando inclusive a pressão psicológica de jogadores e técnicos no gramado. Ele também tem outra sugestão, que poderia até ser enquadrada como um desafio do técnico.

“Caso o árbitro de vídeo tome uma decisão e o técnico não concorde, ele poderia ter a prerrogativa de pedir que o árbitro de campo também olhasse o lance. Duas opiniões podem ser mais precisas do que uma. Creio que seria justo se o treinador pudesse usar esse recurso apenas uma vez por jogo, para evitar que se torne uma artimanha. No final das contas, acho que cabe a todos nós [jogadores, técnicos e árbitros] dedicar um tempo à educação esportiva, para que haja respeito sempre, independente da decisão”, diz Barroca.

Por enquanto, no basquete brasileiro, o desafio do técnico não é uma possibilidade. Diferentemente da NBA, o NBB é regido pelas normas da Federação Internacional de Basquetebol (Fiba, na sigla em inglês), que ainda não prevê utilização dessa regra. Porém, isso não impede que os responsáveis pela liga estejam de olho no que acontece na principal competição do esporte. A partir da temporada 2016-17, os árbitros passaram a ter à disposição o recurso do replay instantâneo, a princípio apenas nas fases decisivas. Em 2019-2020, pela primeira vez, todas as partidas contam com a ferramenta. Para o diretor técnico da Liga Nacional de Basquete (liga que organiza o NBB), Paulo Bassul, a inclusão do desafio é algo que está no horizonte, embora, é claro, não dependa apenas da liga.

“A própria Fiba tem discutido isso. O basquete é um jogo dinâmico e existia uma preocupação de que os técnicos usassem esse desafio para esfriar o jogo. Porém, a NBA foi inteligente, atrelando isso ao pedido de tempo técnico, coibindo qualquer catimba. Eu vejo com bons olhos. É natural que haja estranhamento por causa das mudanças. Ninguém, por exemplo, prefere ficar sem a tecnologia e ver o próprio time perder com um gol irregular. É uma questão de hábito, de tempo”, acredita Bassul.

No fim, o ato de se adaptar, se habituar, é um desafio em si mesmo.

* Números até 15 de dezembro de 2019

error: Conteúdo protegido !!