Caso Marielle: Julgamento do STF sobre quebra de dados do Google servirá de referência para outras investigações no país

O Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a existência de repercussão geral no julgamento do pedido do Ministério Público do Rio (MPRJ) para que a Google forneça dados pessoais de seus usuários, que auxiliem na investigação do assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, ocorrido em março de 2018. Se a decisão da Suprema Corte for favorável ao compartilhamento de dados de provedores particulares aos investigadores, isso mudará a forma de elucidadar crimes no país.

O julgamento ainda não tem data marcada, mas, no último dia 27, o STF já se pronunciou sobre o assunto, ressaltando a importância de se debater o tema que será tratado como “repercussão geral”. Isso significa que, o que for decidido no recurso especial sobre a liberação ou não dos dados pelo provedor Google ao MPRJ, outros tribunais de instâncias inferiores, em casos semelhantes, terão que seguir o entendimento da Suprema Corte.

O tema é polêmico, pois aborda o direito à privacidade. A promotoria fluminense alega, no entanto, que a quebra telemática é de extrema importância para se chegar ao mandante da morte de Marielle, um crime de repercussão internacional. Nos dias de hoje, integrantes de organizações criminosas não usam mais seus celulares para fazerem chamadas. Os criminosos se utilizam de aparelhos para fazerem buscas pelos provedores como Google, Facebook e outros.

O MPRJ pediu à justiça fluminense que o Google fornecesse dados de todos os usuários cuja localização georreferenciada fosse no entorno do pedágio da Transolímpica, Zona Oeste do Rio, no dia 2 de dezembro de 2018, data em que o veículo Cobalt usado na emboscada foi visto pela última vez. Também foi pedido ao STF a identificação de todos os usuários que fizeram buscas usando termos como “agenda Marielle Franco”, “Rua dos inválidos, 122” e outros, na semana anterior ao assassinato. Tanto o Tribunal de Justiça do Rio (TJRJ) como o Superior Tribunal de Justiça (STJ )entenderam que os pedidos eram pertinentes e determinaram à Google que fornecesse os dados.

O relator do processo no STJ, Rogério Schietti, e outros sete ministros votaram para que o Google entregue ao Ministério Público do Rio informações relacionadas a números de IP (sigla em inglês para “protocolo da internet”) e Device ID, que é a identificação de computadores e celulares. O cruzamento desses dados permite a localização do usuário. A empresa, no entanto, recorreu ao STF, alegando que as ordens contra ela violam a Constituição Federal, tendo a relatora do pedido, Ministra Rosa Weber, reconhecido a repercussão constitucional.

Por nota, as promotoras de Justiça que coordenam a Força-Tarefa do Caso Marielle, Simone Sibílio e Letícia Emile, ” avaliam como muito salutar o tema ter sido acertado como repercussão geral porque irá impactar todas as investigações no país”. Elas disseram que “acreditam que a solução será a reafirmação da soberania da justiça brasileira”. Já a Assessoria de Recursos Constitucionais Criminais/MPRJ preferiu não se posicionar “em razão do sigilo imposto à causa”. Já a Google informou que mandaria uma nota com seu posicionamento, mas não respondeu até o fechamento da matéria.

Para Fábio Pimentel, especialista em proteção de dados pessoais e sócio do J Amaral Advogados, a questão é polêmica e merece que o Supremo faça uma apreciação à luz da Constituição Federal:

— A aprovação do compartilhamento de dados para os MPs irá mudar a forma de como se investiga em todo o Brasil. Haverá mais ferramentas para a elucidação de um crime. sobre o Caso Marielle, há um inegável interesse público, seja por se tratar de um assassinato, seja pelo fato de o crime ter tido repercussão nacional, por conta das vítimas e das circunstâncias brutais em que ocorreu. As famílias dessas vítimas esperam e merecem respostas concretas do Estado — argumentou Pimentel — Por outro lado, há também uma preocupação absolutamente legítima quanto à extensão e limites de uma eventual decisão que confirme o dever de fornecimento dos dados, que pode ser aplicada a outros casos semelhantes, sistematizando uma possível desproporcionalidade entre relativização do direito à proteção de dados pessoais e o interesse público, já que o pedido do Ministério Público é bastante abrangente, por mais que a investigação assim exija — ponderou.

O professor da Uerj Carlos Affonso de Souza não tem dúvidas sobre a importância de se chegar ao mandante das mortes de Marielle e Anderson, como disse Pimentel. No entanto, ele também chama atenção para que não se exponham pessoas sem ligação com a investigação:

— O Brasil quer saber quem mandou matar Marielle. Mas é preciso não permitir que o desejo de ver finalmente desvendado um crime que assombra o País se transforme em permissão para que investigações sejam conduzidas de forma desproporcionais e que possam expor pessoas que nada têm a ver com o caso.

Affonso acredita que será um grande passo para que ocorram sensíveis mudanças na maneira de apurar os casos de repercussão, mas é preciso ter bom senso no uso dos dados.

— O fato de a decisão do STF ser em repercussão geral acende o alerta para uma mudança de paradigma na forma pela qual se investigam crimes das mais diversas naturezas. A prevalecer a ideia de que autoridades investigativas podem solicitar o histórico de buscas por palavras-chave em dado período de tempo, essa prática tende a se tornar rotineira. Ela levará ao conhecimento do Estado informações de busca de pessoas estranhas ao caso, mas que passarão a ser tratadas pelo Poder Público — ressaltou o professor — Gera preocupação que, em tempos de formação de dossiês com perfis ideológicos, autoridades investigativas sejam transformadas em controladoras de dados que revelam o que as pessoas buscam na rede. Em nome de Marielle, que lutou pelos direitos humanos, seria legitimada uma prática investigativa que fere os próprios direitos humanos — opinou Affonso.

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