De FHC a Temer (passando por Lula e Dilma)

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*Paulo Kramer

O gigantismo da crise econômica, a gravidade dos seus impactos sociais e os avanços inéditos da Operação Lava-Jato abalam a classe política (aqueles que, weberianamente falando, vivem “da” política, enquanto o seu subconjunto elite política vive não só dela, mas também “para” ela).
Enquanto isso, grandes parcelas da opinião pública urbana, e não apenas os seus setores mais abastados e ‘ilustrados’, estão despertando para o inevitável acerto de contas do Estado brasileiro (nas três esferas e nos três níveis de governo) com a sua calamitosa situação fiscal.
Assim como, em passado não muito distante, tive a oportunidade de assistir de perto às negociações que possibilitaram a adoção de Lei de Responsabilidade Fiscal (em 2000, eu assessorava o saudoso senador amazonense Jefferson Péres, que, apesar de já ter migrado do PSDB para o PDT, relatou o projeto por duas vezes – na Comissão de Constituição e Justiça e na de Assuntos Econômicos – por expressa indicação do então ministro da Fazenda Pedro Malan), agora auxilio o deputado Darcísio Perondi (PMDB/RS), relator da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 241/2016, Novo Regime Fiscal. Lembro bem que, na época da LRF, eu e vários outros analistas percebíamos certo despertar da consciência da sociedade brasileira para essa problemática, um avanço em boa medida propiciado pela explosão das dívidas estaduais, decorrente da imprudência demagógica com que os governadores, que voltaram a ser diretamente eleitos em 1982, inflacionavam as folhas de pagamentos e financiavam a farra orçamentívora com saques a descoberto contra os bancos estaduais, àquela altura convertidos em sucursais oficiosas da Casa da Moeda… O descontrole desaguou na chamada crise (ou escândalo) dos precatórios, de 1997/98, conjuntura retratada com talento jornalístico por Ana Paula Padrão em seu livro A Chave do Cofre. À época, parecia disseminar-se a convicção de que não dava mais para os governos subnacionais, nem para o nacional, que assumiu a fatura em troca da privatização ou puro e simples fechamento da maioria daqueles bancos estaduais entre outras medidas de austeridade, torrarem o dinheiro do contribuinte como se não houvesse amanhã.
Infelizmente, aquele lampejo de lucidez exibiria fôlego curto, a par da evidente deficiência da LRF, que não incluiu a União no seu escopo fiscalizatório. A estagnação econômica a reboque de sucessivas crises financeiras internacionais (México – 1994, Tigres Asiáticos –1997, Rússia – 1998); o consequente desemprego; e a crise do apagão mergulharam na impopularidade o segundo mandato do governo Fernando Henrique Cardoso e abriram caminho para a longa era de poder lulopetista. A política econômica do primeiro mandato presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva, pautada pelo eixo Antonio Palocci, no Ministério da Fazenda/ Henrique Meirelles, à frente do Banco Central, dissipou as graves desconfianças dos mercados em relação ao governo do PT, que não apenas manteve intacto como aprofundou o rigor do famoso tripé fernando-malanista: câmbio flutuante/ estabilidade de preços/ responsabilidade fiscal. Porém, com a bonança das commodities, a miragem do pré-sal e a (primeira) queda em desgraça de Palocci, o governo retroagiria às velhas superstições do seu manual econômico, na prática o vudu nacional-desenvolvimentista estatizante que já havia gerado tanto descontrole inflacionário e instabilidade política antes e depois de 1964. Foi assim desde o segundo mandato de Lula até o mandato e meio de sua sucessora, Dilma Rousseff. Deu no que deu. E eis aí o tremendo nó que cumpre ao governo do presidente Michel Temer desatar, se for ele capaz.
Dói-me reconhecer que essa evolução interrompida da maturidade fiscal brasileira contou com a ativa, entusiástica e irresponsável participação do grande público. Ninguém me tira da cabeça que boa parte dos que reelegeram Dilma – afinal, ela não foi reconduzida exclusivamente pelos recipiendários do Bolsa Família… – sabia muito bem, mesmo que esse conhecimento fosse varrido para o mais recôndito porão do inconsciente, que a orgia de desperdício, incompetência, isenções tributarias a empresários e setores ‘companheiros’, além de pura e simples corrupção, não poderia sustentar-se por muito mais tempo. Preferiram bancar o avestruz: cabeça enterrada na areia e rabo de fora. Acabou prevalecendo a nossa proverbial inapetência para as reformas. O País todo, eleitores de Dilma ou não, trombou de frente com dura realidade: gastos muito superiores à receita não podem durar indefinidamente.
Neste exato momento, o Brasil vive um doloroso, mas inescapável, reencontro com as brutalidades da aritmética. A recente débâcle petista nas eleições municipais atesta essa ‘queda na real’. Grande maioria do eleitorado da capital paulista, orgulhosa locomotiva nacional, resolveu encarar o corolário administrativo da crise fiscal elegendo, em inédito primeiro turno, o empresário João Dória Júnior (PSDB), cuja proposta é a mais completa tradução do rechaço à falida concepção da governança exclusivamente centrada no orçamento público, aquele cobertor sempre curto demais para aplacar os caprichosos calafrios dos lobbies corporativistas e, com o que porventura sobrar, atender às legítimas demandas das classes desfavorecidas… Dória encarna um projeto de administração pública calcado em parcerias com o mercado e com a sociedade civil, concessões e privatizações.
Mensalão e reforma política (o retorno?). A política petista de alijar sistematicamente os partidos da base aliada do processo decisório da administração direta (ministros de outras siglas? Tudo bem, mas, da secretaria-executiva para baixo, só petistas… Afinal, o projeto de eternização do Partido dos Trabalhadores no poder passava tanto pelo saque à Petrobras e outras estatais quanto pela metódica coleta do dízimo dos militantes) deixou como única opção para o gerenciamento político da fragmentada coalizão governista a compra de apoio parlamentar mediante dinheiro vivo.
Hoje, observadores experientes do cotidiano congressual asseveram que nunca esteve tão próxima a oportunidade de disciplinar essa choldra partidária via uma cláusula de barreira ou desempenho que reduza a proporções administráveis de quase 30 siglas existentes na Câmara. Vale lembrar que já neste ano, o candidato a vereador que obteve menos que 10% do quociente eleitoral (número de votos válidos dividido pelo número de cadeiras em disputa) não foi eleito.
Mais preocupante, ao que me parece, é a adoção, cada vez mais provável, do chamado voto em lista fechada, juntamente com a proposta de aporte de R$ 3 bilhões para o Fundo Partidário – resposta dos senhores congressistas ao sufoco financeiro trazido pela proibição das contribuições empresariais. Antes encarada como mais um truque do lulopetismo para perpetuar-se no poder, a lista fechada passou a ser defendida até mesmo pelo DEM, do atual presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia (RJ).
Com as cúpulas partidárias definindo em convenções cuidadosamente coreografadas a ordem de preferência para os sufrágios que pingam nas legendas, a cristalização oligárquica da vida política torna-se algo mais que simples ameaça.

*Paulo Kramer é cientista político e assessor parlamentar.

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