Ninguém é corrupto por acidente

*Francisco Balestrin

Não existem arroubos de corrupção. Ninguém se corrompe em um momento de forte emoção, para depois se arrepender do ato praticado de forma impensada. A corrupção é causada por uma complexa interação entre valores – ou a falta deles – tanto do indivíduo quanto do meio social e, fundamentalmente, inclui o cálculo racional entre aquilo que a pessoa vai ganhar com a atividade ilícita e o risco de pagar pelo crime.
No Brasil, o cálculo racional sempre favoreceu a corrupção. As vantagens a receber eram vultosas, a punição era praticamente inexistente e, quando ocorria, as penas eram brandas. Mesmo a reprovação social era pequena: empresários, políticos e outras figuras notórias, reputadamente corruptas, continuavam a circular em público sem maiores embaraços.
A situação, felizmente, vem mudando no país. Uma atuação incisiva do Ministério Público, da Polícia e do Judiciário contra a corrupção transformaram o cálculo de risco daqueles que se corrompem tanto nas empresas quanto no governo. A sociedade também parece mais atenta e menos tolerante com os desvios. Isto tem reflexos em todas as áreas, inclusive no setor da saúde.
É lugar-comum, ao falar do tema da corrupção, dizer que qualquer área tem suas maçãs podres, e que não podemos julgar o cesto inteiro por conta dessas maçãs. Alguns poucos prejudicariam a grande massa de pessoas honestas. Em algumas áreas da saúde, porém, como no mercado de órteses e próteses, às vezes temos a impressão de que a situação se inverteu: as maçãs boas são em menor número do que as podres. Neste mercado, tem-se a percepção de um sistema que privilegia os descaminhos em detrimento das instituições e profissionais honestos.
Ao longo dos anos, um círculo vicioso se formou. A redução, por parte das operadoras de planos de saúde, da remuneração dos médicos e dos hospitais por suas atividades legítimas tornou mais atraente a busca por recursos nos fabricantes e nos distribuidores de dispositivos médicos. Isto, por sua vez, reduzia ainda mais os recursos disponíveis para a remuneração legítima, tornando ainda mais atraentes as ofertas sombrias. A verdade é que precisamos recompensar adequadamente os bons médicos e hospitais, que evitam os conflitos de interesse e que agem, sempre, de acordo com as melhores práticas.
Naturalmente, parte da solução envolve encontrar e punir os malfeitores que desonram a profissão médica e que põem em risco os seus pacientes. Focar-se nessa questão, porém, não resolve as causas do problema. Enquanto não alterarmos fundamentalmente o sistema de incentivos do setor e a forma pela qual se presta e remunera a assistência, inevitavelmente novas maçãs podres surgirão. Sem uma alteração desta lógica perversa, cairemos na velha máxima de Ruy Barbosa, que de tanto pagar pelos desvios alheios, o profissional ou a instituição que age corretamente chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto.
O setor vem se mobilizando fortemente, e de forma voluntária, para mudar esta realidade. O Instituto Ética Saúde, por exemplo, nasceu do desejo de criar uma estrutura setorial em favor da ética, envolvendo todos os elos da cadeia da saúde. O instituto disponibiliza um canal de denúncias para coibir práticas irregulares. Em 2016, 462 denúncias foram recebidas e analisadas – mais de uma por dia. Junto a isto, o maior evento científico do setor hospitalar no Brasil dedicou a sua edição de 2016 para tratar do tema da ética e da implementação das ferramentas de integridade em hospitais.
A transformação ética, no Brasil e na saúde, dependerá da participação de toda a sociedade. Nos últimos anos, demos grandes passos neste sentido. A corrupção agora vem atrelada ao medo da punição e da desonra pública – inclusive na saúde.
Sim, é possível vencer a corrupção no setor e oferecer mais acesso à saúde e com mais qualidade, dentro de uma relação custo-benefício adequada. Isto, porém, não ocorrerá do dia para a noite, nem com ações midiáticas. É necessário que cada elo da cadeia da saúde: indústria, financiadores, operadoras, prestadores e profissionais olhem para as consequências de suas ações para o sistema como um todo e busquem, em conjunto, soluções estruturantes para o setor. Algumas áreas e instituições já começaram a sair de suas caixas e ter uma visão mais ampla sobre o problema. Fica aqui o desafio para as demais.
*Francisco Balestrin é presidente do Conselho de Administração da Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp).

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