*Sílvia Caetano
Enquanto sem nenhum programa para resolver o problema, o prefeito de São Paulo, João Dória, desmontou a Cracolândia e a policia prendeu mais de 30 pessoas, entre consumidores e traficantes, Portugal completa 15 anos da adoção da descriminalização da posse de drogas para consumo pessoal. Foi um decisão política corajosa e tecnicamente acertada, que desviou centenas de pessoas da morte, da desgraça e das prisões para o tratamento médico e recuperação. A mudança legislativa surgiu da constatação do fracasso de séculos de repressão e proibições e da dimensão do tráfico e do consumo de drogas em Portugal, que havia atingido recordes europeus na década de 90.
Liderado pelo médico João Goulão, Portugal foi o primeiro país a descriminalizar as drogas, separando o tráfico do consumo, adotando, paralelamente, programas de dissuasão dos consumidores. Desde então, são oferecidos cuidados de saúde e apoio psicológico a todos os que o procuram, buscando-se ativamente aqueles que não se mobilizam espontaneamente, para enquadrá-los através de estruturas de redução de danos. As iniciativas contribuíram para aumentar a esperança e qualidade de vida dos usuários. Centenas de dependentes em tratamento se beneficiaram de processos de discriminação positiva para o emprego e ampliaram-se os programas de prevenção.
O toxicodependente passou a ser tratado como um ser humano doente e não mais perseguido criminalmente, numa mudança de paradigma que transformou Portugal num exemplo de boas práticas. Com a descriminalização das drogas, houve acentuada redução nas taxas de contaminação por HIV entre os utilizadores, das mortes por overdose, da pequena criminalidade e de condenados à prisão por crimes relacionados ao consumo de drogas.
Ao contrário do que defendiam os opositores da descriminalização, nem o consumo aumentou nem Portugal tornou-se um ponto de encontro de dependentes de outros países do mundo. O número de condenados por este motivo desceu de 41% para 19% em 2015, enquanto o de consumidores de heroína caiu pela metade. Nos final dos anos 90, havia cerca de 100 mil utilizadores problemáticos de heroína por via injetável. Calcula-se que, atualmente, sejam cerca de 45 mil, o vem reativando o debate sobre a necessidade de providências complementares para enfrentar o problema, como, por exemplo a criação de salas para o consumo assistido.
Enquanto no Brasil, como aconteceu no último domingo em São Paulo, os dependentes de drogas continuam a ser perseguidos como criminosos, discriminados, sem programas efetivos de recuperação e de reinserção da sociedade, há mais de 30 anos foram implantadas na Europa salas de consumo assistido. Até agora, houve apenas uma morte nesses espaços onde as drogas são consumidas sob supervisão para evitar riscos de transmissão de doenças e mortes por overdose. Desde então muitos países europeus adotaram o modelo.
Estudos desenvolvidos pelo Observatório Europeu de Drogas e da Toxicodependência indicam que, em 2014, pelo menos 6800 pessoas morreram na Europa em decorrência de overdose. Atualmente, nove países europeus possuem salas de consumo assistido, num total de 90 espaços. As últimas foram criadas na França e Estrasburgo, próximas a um hospital. A Holanda possui 30, Alemanha 24, a Suiça e a Espanha 13. Há 5 na Dinamarca. E a Noruega, a Grécia e Luxemburgo instalaram uma cada.
Há diferentes modelos de salas, algumas com serviços integrados, especializados ou unidades móveis. No primeiro espaço há uma rede de apoios que incluem aconselhamento, tratamento de doenças e feridas, troca de seringas e atendimento psicológico e social. Na Alemanha, além de receberem esses cuidados, os consumidores podem fazer refeições, tomar banho, mudar de roupa e até lavá-las. No mesmo espaço há clínicas para cuidados gerais, pequenos internamentos para quem está em tratamento de desintoxicação, convivendo com salas separadas de consumo para drogas injetáveis e aspiradas.
Variam as regras para o acesso às salas. Em alguns países, como na Alemanha, não entra quem está em tratamento com opiáceos de substituição. Dessa forma, ficam de fora cerca de 70 mil pessoas. A maioria só aceita maiores de 16 anos desde que com autorização dos pais, mas a maior parte só permite o acesso aos maiores de 18 anos. São vetados os consumidores ocasionais, que estejam a experimentar drogas pela primeira vez ,bem quem chega bêbado ou intoxicado. Todas possuem equipe especializada para intervir em caso de overdose, e que ensinam suas técnicas aos dependentes para ajudarem aos que, eventualmente, atinjam esse estágio mortal de consumo.
Em 2001, Portugal aprovou a instalação das salas de consumo assistido, mas até agora um jogo de político de empurra ainda não permitiu a medida sair do papel. As administrações de Lisboa e do Porto não querem assumir a implantação a iniciativa, mas isso e está preste a acontecer por causa do recrudescimento do uso de drogas. De qualquer forma, são exemplos que poderiam ser adotados pelo Brasil, onde o problema é mantido sob repressão policial, sem o governo nada fazer para reduzir essa chaga social que afeta milhares de pessoas.
*Sílvia Caetano é jornalista.