Tempos de delicadeza e respeito mútuo

*Sandra Meira

Voltei a Diamantina. Para uma visita muito especial: aniversário de Cora Tameirão Couto, a vizinha querida da época em que lá moramos. Corinha fez 91 anos e ganhou de presente o primeiro bisneto: Eduardo. Aquele fiapinho de gente, parecendo um novelo de lã, todo enrolado nos braços da bisavó.
É sempre emocionante voltar à cidade da qual já falei neste espaço e que chamo de “minha Macondo”, pois lá há costumes muito diferentes e expressões incomuns. “Por falta de adeus, até logo”, “pagar bolão”, deixar de sair de casa porque se pressente a morte, muito tempo antes de a morte se anunciar…
É claro que não vi mais cadeiras postadas na calçada em frente às casas ao entardecer. Tampouco vi serenatas espontâneas com que muitos se expressavam em noites de lua cheia. Mas, desta vez, consegui finalmente assistir a uma Vesperata, isto é, à deslumbrante apresentação de músicos postados nas varandas do casario antigo, tocando seus instrumentos, dirigidos por um maestro que fica no meio da multidão, cá em baixo.
Fiquei hospedada no antigo casarão do dr. Lomelino Couto, o médico de família que andava de casa em casa e tinha receitas bizarras, mas que produziam efeito melhor que remédios de agora. Por exemplo, se a pessoa sentia mal-estar no estômago, ele mandava que ela fechasse os olhos e pensasse no que havia comido ou bebido antes. Aquilo que lhe desse “gastura”, isto é, que a arrepiasse, era a causa do problema. Aí, bicarbonato ou algo assim o curava. Hoje, o casarão virou uma pousada deliciosa, dirigida por sua neta e pelo marido dela, Relíquias do Tempo. E Corinha mora na casa onde morei, só que toda reformada – mas, mesmo assim, a saudade dali quase me mata.
Desta vez, porém, me emocionaram dois gestos de antigamente, quando o dinheiro e o desrespeito com quem pensa diferente não moravam em nossas casas. Naquele tempo, o juiz de direito era pago pela coletoria municipal – o que significava, em comarcas pobres, atraso no pagamento e muita dificuldade para sustentar uma família. Filha do juiz, eu mesma cansei de posar de “esposa” porque mamãe não tinha roupa apropriada para certas cerimônias e eu a representava, mercê das roupas que uma prima rica mandava para mim. (Foi numa dessas ocasiões que conheci pessoalmente o presidente Juscelino Kubitscheck, que me deu um retrato oficial de sua posse, com dedicatória. Esse quadro mantenho em meu escritório, apesar de agora ser crítica de seu governo).
Mas o mais bonito foi saber duas coisas: quando o salário do papai atrasava muito, era a filha do dr. Lomelino quem emprestava o dinheiro para pagar o aluguel. Ou seja, a filha do locador é quem ajudava minha família a sobreviver. E soube também que, apesar de terem posições divergentes, foi papai quem avisou ao filho do dr. Lomelino, em 1964, que ele poderia ser preso se continuasse a bradar contra a derrubada de Jango.
Tudo bem diferente de hoje em dia. Tempos de delicadeza na vida privada e de respeito mútuo na vida pública.

*Sandra Meira Starling é professora, advogada e militante política.
Artigo publicado originalmente no jornal ‘O Tempo’, de Minas Gerais.

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