Ainda podemos falar em globalização?

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*Marco Aurélio Mello

Considerações finais: Em nova era de nacionalismos e populismos, ainda podemos falar em Globalização?
Devo dizer da alegria de participar, mais uma vez, deste prestigioso evento, ocorrido anualmente na Universidade de Coimbra, uma das maiores universidades de Portugal e da Europa, das mais antigas do mundo e declarada Patrimônio Mundial pela UNESCO. Afirmo a honra multiplicada em razão de o Seminário ser realizado em homenagem ao Ministro Teori Zavascki, falecido recentemente, que nos deixou um legado de seriedade e compromisso ético no exercício da função judicante.
O evento é sempre atual, voltado aos problemas contemporâneos no mundo. Neste ano, o tema não poderia ser mais urgente: a Pós-Globalização “cara a cara” com a Democracia. Ou poderíamos falar na “desconstrução da Globalização”? A organização do Seminário está de parabéns pela estrutura temática: falar das relações e tensões entre o movimento rotulado de Pós-Globalização e Democracia envolve o exame de fenômenos, a saber: nacionalismo, protecionismo, populismo e crise de representação política.
Farei a avaliação final desses campos, considerada a inter-relação entre os acontecimentos, todos rumando por caminhos perigosos em detrimento da paz mundial. A apresentação não possui a pretensão de revisar o que foi dito até aqui – de forma brilhante e inspiradora pelos expositores. O objetivo é trazer reflexões, como espectador preocupado com as transformações.
Sabe-se que o conceito de globalização surgiu na década de 70 do século passado, nos Estados Unidos, como instrumento a orientar estratégias de comércio internacional para empresas nacionais. A ideia surgiu como “comércio global”, proposta de ordem econômica mundial sem fronteiras. Ganhou fôlego quando Gorbachev liderou a abertura do regime soviético – a perestroika, no campo econômico, e a glasnost, no campo político. Autores passaram a falar em “mundialização do capital”.
A globalização não se encerrou em um viés econômico. A integração mostrou-se social, cultural e política. O mundo sem fronteiras não é apenas o do comércio e das transações mobiliárias, mas também o da cultura, o das decisões políticas, o do convívio social. Globalização pressupõe tolerância, solidariedade, convivência pacífica de povos cultural, religiosa e linguisticamente diferentes. Esse foi o cenário no qual surgiram movimentos de integração como a União Europeia e o Mercosul. Mas a ordem mundial está sob severa ameaça.
Pós-Globalização é uma nova fase do fenômeno da globalização ou, muito ao contrário, um processo de desconstituição da globalização mundial? Acredito, a mais não poder, que estamos diante de eventos tendentes à desconstrução da globalização. Assistimos ao ressurgimento de fortes sentimentos de nacionalismo, à crescente tomada de medidas de protecionismo econômico, à ascensão de populismos de matrizes de direita e de esquerda, tudo isso em quadra de crise permanente de representação política, de descrédito da instituição representativa por excelência: o Parlamento. Longe de ser um “novo rótulo”, há, de fato, forte tendência de enfraquecimento ou mesmo de superação dos elementos que compuseram os processos de globalização.
As graves e recentes crises econômicas e a ameaça do terrorismo representam os principais fatores dessas transformações significantes. Alguns insucessos e os desafios concorrenciais de uma economia globalizada têm feito parecer que neoprotecionismos possam ser o melhor remédio. O fator China explica bem o contexto. Quanto ao terrorismo, revela-se com novo perfil: a Europa, multiétnica e multiconfessional, passa a sofrer com um terror “caseiro” ou “interno”, ou seja, praticado por nacionais de origens familiares diversas, normalmente jovens seduzidos pela propaganda radical dos grupos extremistas. Trata-se de desafio a conduzir à vigília máxima, não apenas das fronteiras.
Esses aspectos têm contribuído para a revelação de um “mundo pós-globalização”. Um mundo de maior tutela das identidades nacionais, de regresso a fortes nacionalismos, tendo, como consequência, a crescente intolerância com os imigrantes; um mundo de protecionismo econômico, com o fechamento das fronteiras comerciais. Um mundo de populismos políticos, de maior distância entre os povos e culturas. Observem esses elementos separadamente.
Nacionalismo, fenômeno típico do século XIX e de graves repercussões no século XX, é a ascensão do sentimento de pertencimento a uma cultura, a uma região, a uma língua e a um povo específicos. Forjou-se como ideologia política na França de Napoleão Bonaparte e na jovem nação dos Estados Unidos da América. Elemento do nacionalismo foi a formação de exércitos nacionais compostos por membros indistintos da sociedade, o “povo”, que, mobilizados e estimulados em torno de sentimento comum de identificação cultural, passaram a lutar em defesa das fronteiras, da cultura, da identidade própria, mas também da expansão de territórios. A ideologia nacionalista alcançou a unificação das nações italiana e alemã, mas se exacerbou, culminando na Primeira Guerra Mundial e na ascensão de regimes totalitários – nazismo e fascismo, responsáveis pela eclosão da Segunda Grande Guerra. Produziu as maiores tragédias do século passado, sempre revestindo o monopólio do patriotismo.
Ao que assistimos agora? À volta de experiências históricas, comportamentos e ideários dirigidos à construção de identidade única e coletiva no interior dos Estados? Identidade essa que deve ter como contrapartida comportamento hostil em relação àqueles que não pertencem à mesma nação, que não compartilham as mesmas características culturais? O encurtamento da distância entre os povos, produzido pela integração própria do movimento de globalização, está sendo substituído pela rivalidade, hostilidade e intolerância? Estamos voltando àqueles momentos dos séculos XIX e XX?
Fenômenos políticos recentes, aliados à descrença de parte dos cidadãos nos valores democráticos, apontam para respostas nada animadoras; na realidade, muito preocupantes.
A vitória de Trump e os primeiros movimentos da política econômica desse governo indicam o fechamento das fronteiras físicas e do comércio internacional, o descompromisso com pactos realizados em prol do mundo global. As políticas neoprotecionistas, defendidas também por emergentes partidos de extrema direita da Europa, representam, considerada a relevância dos Estados Unidos, tendência de desconstituição do processo de globalização. Em vez da abertura das fronteiras, a preocupação maior volta a ser a defesa de interesses exclusivamente nacionais, materializada em práticas protecionistas. Alfim, o protecionismo, como medida nacionalista, ameaça a marcha da globalização.
Historicamente, movimentos nacionalistas colocaram-se contra os migratórios e – o que é pior – contra a convivência, no mesmo espaço, entre povos de identidades diversas. O exemplo mais dramático – para dizer o mínimo – foi a perseguição nazista aos judeus. A prática de Hitler nos ensina como discursos inflamados de sentimento nacionalista, de resgate do orgulho de uma nação, podem ser dirigidos à obtenção de apoio popular para a tomada de medidas de intolerância. A fala nacionalista conclama os cidadãos a sentirem-se parte de uma comunidade que deve se unir contra um inimigo comum. É com esse sentido que nacionalismo e populismo se conectam.
Populismo pauta-se no discurso “nós contra eles”. É uma ideologia ou mesmo estratégia eleitoral marcada pela afirmação de existirem sempre dois grupos antagônicos, possuidores de interesses inconciliáveis. O populista apresenta-se como aquele que conduzirá um dos grupos a superar o outro, enfatizando a soberania nacional como manifestação popular.
Como instrumento de poder, de persuasão popular, o populismo pode ser de esquerda ou de direita. Veiculando discurso de ataque à elite política corrupta, Donald Trump é exemplo de populismo de direita que chegou ao poder. A Frente Nacional na França, o partido Lei e Justiça na Polônia e o movimento “Brexit” também são manifestações ou resultados de populismos de direita. A América Latina é pródiga em movimentos populistas de esquerda: Chaves/Maduro na Venezuela; Fidel em Cuba; Perón na Argentina; Vargas no Brasil. O discurso “nós contra eles” é elemento comum entre os populismos de diferentes matrizes ideológicas e pautou boa parte da “popularidade“ do ex-presidente Lula.
Os populismos de direita e de esquerda atuam de forma diversa, com propósitos e fundamentos diferentes, mas têm contribuído igualmente para a desintegração dos processos de globalização: o de direita defende o protecionismo econômico e o fechamento das fronteiras aos imigrantes e refugiados em favor de mais segurança e postos de trabalho aos nacionais; o de esquerda ataca a democracia liberal ao desacreditar instituições importantes, especialmente a independência judicial, e busca a estatização da economia e os monopólios estatais. Surge, atualmente, entre os populistas, um movimento antessistema, que tem como nota a oposição aos elementos da democracia.
A Europa tem assistido à ascensão de populistas da direita radical, com discursos autoritários e nacionalistas. Exacerbam a polarização com a diferenciação entre “nós” e “eles” e o ataque ao que seria uma elite política corrupta, que favorece países estrangeiros e imigrantes, traindo o próprio povo. Aliás, temo muito pelo Brasil, uma vez que reações à corrupção têm pavimentado o caminho ao levante de populistas de extrema direita. Cogita-se do deputado federal Jair Bolsonaro como forte candidato à Presidência da República, graças aos discursos contra minorias e contra a corrupção na política.
Sob o ângulo democrático, o populismo tem apenas aparência de democracia. Pode estar na percepção de um líder carismático, sedutor, a defender ideários nacionalistas, atraindo corações e mentes da maior parte da população. Contudo não pode ser apontado como ideologia política que favoreça a democracia liberal, na medida em que pressupõe o abandono da crença no Parlamento como o espaço democrático e pluralista por excelência. É o déficit de representatividade dos agentes legislativos, revelado na perda de confiança do povo nos Parlamentos, um dos fatores que favorece a ascensão de atores populistas. Ao se opor à visão pluralista, o populismo também ataca as barreiras institucionais e a liberdade de imprensa. O passo ao autoritarismo pode ser curto, rápido e desastroso.
Em boa síntese: nacionalismo, protecionismo, populismo e crise de representação política estão mesclados. Influenciam-se reciprocamente e dão cores fortes ao movimento de Pós-Globalização e ao crescente descrédito da Democracia como regime político plural. Economia e mercados integrados, tolerância e solidariedade, pluralismo representativo e democracia liberal têm dado espaço a neoprotecionismos, ao fechamento de fronteiras em desfavor da ajuda a imigrantes e refugiados, a populismos e à emergência de líderes tão carismáticos quanto autoritários.
Encerro dizendo que esse movimento, ruim em si mesmo, representa ameaça a um direito fundamental de envergadura maior; direito fundamental que é condição de todos os outros direitos fundamentais, senão a síntese de todos esses direitos: o direito à paz. É a paz mundial que está ameaçada. A Resolução nº 39, da ONU, proclama que “os povos de nosso planeta têm o direito sagrado à paz” e que proteger esse direito “e fomentar a sua realização é obrigação fundamental de todo Estado”. Como nos ensina o Mestre Paulo Bonavides, o direito à paz pressupõe o fim das ideologias e está assentado sobre princípios. É a paz kantiana, a “paz perpétua”, cosmopolita, de caráter universal, de feição agregativa, de solidariedade, que se dá no plano harmonizador de todas as etnias, culturas e crenças; a paz ditada pela dignidade de homens livres e iguais.
É preciso amor, esperança e fé na humanidade, presente a memória das atrocidades que nacionalismos e populismos já produziram. É preciso acreditar na paz dos povos como objetivo maior a ser perseguido pelos dirigentes, pelos espíritos esclarecidos, pelas almas elevadas.

 

*Marco Aurélio Melo é ministro do Supremo Tribunal Federal – Palestra proferida Seminário de Verão “Pós-Globalização e Democracia”, na Universidade de Coimbra, Portugal, em 5 de julho de 2017.

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