Ação moralizadora de Jânio Quadros

*Nelson Valente

O funcionalismo público foi o alvo privilegiado da ação moralizadora. Entre as principais medidas diretamente inspiradas pelo presidente destacam-se as que maior impacto causaram na opinião pública (intensos noticiários na imprensa) e nos debates parlamentares: a instituição do horário corrido para o funcionário federal, o controle do “ponto”, enriquecimento ilícito de funcionários e o corte de 30% nas despesas com pessoal.
Outras medidas altamente criticadas referem-se à redução de vencimentos ou de “mordomia” para funcionários em missão no exterior. Tais medidas, em nível da Presidência, revelavam a continuidade da ética e moralismo do gover­nador paulista que marcara sua eficiente adminis­tração pelo controle da “moralidade pública”: visitas “incertas” a órgãos de atendimento público, fiscalização do uso de carros oficiais nos fins de semana, acompanhamento das provas dos concursos para simples escriturário, etc. Ainda na Prefeitura de São Paulo tomaria uma drás­tica medida para “servir de exemplo perante a na­ção, do que se devia fazer, doesse a quem doesse, em defesa do patrimônio público”. Puniu o atleta Ade­mar Ferreira da Silva, campeão olímpico de salto triplo, por se ter afastado do cargo para a prática esportista, justificando-se:”infelizmente era um fun­cionário relapso e a Prefeitura não é clube de atle­tismo”.
Um mês apenas após a posse, um grupo de empresários da CONCLAP encaminha ao presidente um documento intitulado “Sugestões para uma Po­lítica Nacional de Desenvolvimento”. Jânio reage agressivamente, como se entendesse sua autoridade solapada por pressões indevidas: “Tenho de aplicar medidas drásticas e ásperas, a fim de conduzir este país à sanidade. São-me indiferentes os aplausos e os apupos (…) Homens poderosos já me procuraram para expressar sua insatisfação com o meu governo. Expliquei-lhes que só há dois meios de tolher os meus passos: depor-me, ou assassinar-me, o que não me parece fácil”.
É de se reconhecer, no entanto, que um presidente que começa o seu mandato sem um líder parlamentar e que realiza um discurso de posse tão enfático contra o governo anterior — tendo em vista a já apresentada composição do Legislativo — não está tão preocupado em angariar apoio para as eleições das Mesas do Congresso. Isso ficou ainda mais evidente com as atitudes posteriores de Jânio. No segundo dia de trabalho, o presidente iniciou a abertura de sindicâncias a fim de investigar irregularidades em diversos órgãos governamentais durante a administração JK.
No Governo de Juscelino Kubitscheck (1956-1961), os escândalos ocorreram em função da construção de Brasília, a nova Capital Federal. As rendas fáceis dos empresários – “máfia das construtoras”, cresceram porque as obras de Brasília eram dispensadas de licitações.
A reação dos parlamentares oposicionistas, muitos dos quais estavam politicamente vinculados às realizações da última administração, foi imediata.
O fato de o Legislativo não ter sido consultado irritou a muitos congressistas, já que, segundo estes, seria possível ao governo averiguar quaisquer irregularidades por meio de Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI). Além disso, a presença de militares nas chefias das sindicâncias —gerou maiores tensões.
Os relatórios finais, divulgados pela imprensa, chegaram a envolver o nome do vice-presidente (notoriamente comprome­tido com a política trabalhista e previdenciária dos governos anteriores), o que provocou uma virtual ruptura entre Goulart e o presidente Jânio Quadros.
E Jânio segue em seus ataques:
Em novembro último, não dispúnhamos de 47 milhões e 700 mil dólares para cobrir os ajustes com o Fundo Monetário Internacional. Faltaram, igualmente, recursos para quitar duas obrigações do Eximbank (…) Tomou-se apenas a providência de descarregar as faturas vencidas sobre a administração que ora se instala. Devo pagar, entre 1961 e 1965, 1 bilhão, 853 milhões e 650 mil dólares de prestações, o 95 que significa, fazendo a conversão do dólar à taxa do câmbio livre, na base de 200 cruzeiros o dólar, 370 bilhões e 730 milhões de cruzeiros.
O pior é que esses números não eram fabricados.
Jânio Quadros: “Eu costumava dizer àqueles que não gostavam da lei que não a havia redigido. Quando Presidente da República desci do Horto Florestal num Volks ao lado de Faria Lima. Eu mesmo estava guiando o Volks e entrei numa contramão. O guarda civil me deteve e me multou. Certo. O Presidente da República não tem imunidades para viajar na contramão.”
Nelson – Ele não te reconheceu?
Janio Quadros – “Nem me olhou na direção. Olhou minha carta, escreveu a multa, deteve-se no “Quadros”, deixou cair o livro de multas e o lápis e desapareceu em uma feira livre (risos).”
Nelson – Deve estar correndo até hoje.
Jânio Quadros – “Juntei tudo e mandei para o Diretor de Trânsito com Cr$ 20 – uma multa de contramão àquela altura – e acrescentei uma observação para que chamasse o guarda e lhe dissesse: “O Presidente da República não tem imunidade para viajar na contramão”. Estou sujeito à lei como qualquer outro.”
Segundo Jânio Quadros: “Minhas memórias não virão tão cedo pelo menos enquanto alguns cavalheiros estiverem vivos. Aprendi no berço com minha mãe, que não há homem meio honesto e meio desonesto. Ou são inteiramente honestos ou não o são.”

*Nelson Valente é professor universitário, jornalista e escritor.

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