Tatuagem e padecimento

*Maria José Rocha Lima

Preocupa-nos a onda de tatuagens que assola o país, especialmente entre as pessoas jovens. Acabo de ler mais uma história. Dessa vez de um jovem que tatuou uma carta, no seu tronco, em homenagem à avó com Alzheimer. O estudante de jornalismo Leonardo Martins, de 19 anos, causou uma comoção imensa nas redes sociais ao homenagear sua avó materna, para eternizar o amor dos dois.
Disse ele: “Eu fiquei com medo de perder, acho que agora eu não perco mais”. A publicação das fotos com a carta tatuada, em sua página no Facebook, no último dia 8, viralizou nas redes. Até quinta-feira, 11/08, já havia ultrapassado 310 mil reações, além de 132 mil compartilhamentos e 60 mil comentários.
As tatuagens e piercings, nos corpos jovens, devem nos levar a refletir sobre a necessidade de uma abordagem específica sobre o corpo adolescente. E sugerem um olhar atento, não preconceituoso, respeitoso, direcionado ao uso desses adornos e marcas, que muito podem dizer respeito à singularidade; e sobre as formas de padecimentos, que afetam esses adolescentes.
Inspirados na proposta freudiana a respeito dos impactos da civilização na condição humana, apresentada na obra o Mal-estar na civilização, de 1930, questionamos qual é o mal-estar do nosso tempo.
Para alguns estudiosos, a sociedade pós-moderna continua centrada no eu, como a moderna, mas a questão narcísica desloca-se para a imagem dos objetos. Alguns autores, como Dunker C & Neto (2004) destacam: “Essa ênfase na exterioridade faz-se notar pelas patologias da ação (tentativas de suicídio, delinqüência, vandalismo) e do corporal (patologias psicossomáticas, anorexias, bulimias. O mal-estar da atualidade atinge, principalmente, o corpo, tendo em vista que os processos psíquicos de simbolização estão, cada vez mais, escassos”. Ao observar os excessos, muitas vezes presentes nessas marcas corporais, em cada adolescente, deve – se “escutar o que não fala, mas comunica”. É preciso chamar a atenção para essas formas de expressão que denunciam um possível fracasso psíquico de metabolizar as intensidades psíquicas próprias da adolescência.
Na adolescência, momento da vida no qual ocorrem muitas mudanças, que provocam instabilidade, as tatuagens, marcas duradouras feitas na pele, podem promover a sensação de permanência, de controle e poder sobre os limites de sua própria pele.
As questões culturais não podem ser deixadas à margem do intenso trabalho de ressignificação que a adolescência coloca em pauta. Mas a fragmentação da identidade e do mesmo modo a condição de desamparo sentida pelos jovens podem estar denunciadas nessas marcas no corpo.
Ao chocar pelo visual, provoca no outro uma desconsideração da dor psíquica escondida sob uma pele tatuada e carregada de perfurações.
A Psicanálise alerta para o fato de que essas práticas corporais atendem a aspectos primários da estruturação do psiquismo e destaca a colocação de piercings,tatuagens e escarificações como práticas corporais que provocam nas pessoas sentimentos de autoproteção, de apropriação de uma identidade, de reapropriação do próprio corpo, de autoconfiança, de um corpo, antes, pouco sensível ou insensível.
As marcas no corpo adolescente evidenciam que este é um meio pelo qual é possível expressar faltas e excessos, representando uma linguagem particular dessa fase da vida.
É necessário um olhar atento às manifestações no corpo adolescente para que, assim, se possa compreender os pontos de enlace e desenlace entre o que é da ordem da cultura e o que diz respeito às questões da individualidade.
O ato de se tatuar é muito mais do que uma prática relacionada com a moda ou a um fenômeno de imitação de grupos jovens, mais parece uma maneira específica de construção de uma identidade particular, inscrita na própria pele.
Essa nova identidade tem a ver com a eleição de grupos de pertencimento que giram em torno das tatuagens; de amigos que têm tatuagens ou são tatuadores; que freqüentam oficinas de tatuagens e planejam futuros símbolos, marcas na própria pele. Desse modo, formam-se grupos, nos quais os laços entre os adolescentes são as tatuagens.
A mudança drástica da imagem do corpo, quase sempre, agride o olhar alheio. Esse corpo, tatuado, perfurado, escarificado, pode ser um apelo, um clamor pelo olhar do outro.

*Maria José Rocha Lima é doutoranda em educação. Deputada Estadual da Bahia(1990-1998).

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