Europa, dura com o Brasil; frouxa com a salmonela no leite francês

*Pedro Luiz Rodrigues

A imprensa e os governos europeus foram implacáveis com o Brasil quando do registro – aliás identificado pelas próprias autoridades brasileiras – de que falhas na fiscalização sanitária poderiam estar comprometendo a qualidade da carne que exportávamos
O problema, que o Brasil buscou imediatamente corrigir, é até hoje brandido pelos europeus, em prejuízo das pretensões brasileiras nas negociações do acordo de comércio que se busca finalizar entre o Mercosul e a União Européia.
O argumento, louvável se fosse verdadeiro, é que os governos europeus preocupam-se muitíssimo com a qualidade dos produtos que seus consumidores ingerem. Essa preocupação, como demonstra o caso Lactalis, parece contudo ser mais destinada a discursos do que à ação prática.
Nem eficiência nem rapidez foram a marca europeia no trato de um dos maiores escândalos envolvendo o setor lácteo de um país desenvolvido. Refiro-me à contaminação por salmonela de laticínios – muitos destinados ao consumo infantil – de produtos da Lactalis, a empresa francesa que acaba de adquirir a Itambé aqui no Brasil.
A Lactalis, o governo francês e as autoridades européias de modo geral demonstraram enorme incompetência, beirando à irresponsabilidade, em tratar da questão, como assinala Liz Alderman, em instigante artigo que publicou ma edição de hoje (2 de fevereiro) do The New York Times: “ foram precisos três ‘recalls’ e muitas semanas para o problema ser esclarecido, gerando forte clamor público sobre o que ficou conhecido na França como ‘L’Affaire Lactalis’”. No final, a empresa teve de recolher 7 mil toneladas de alimentos infantis e outros produtos lácteos potencialmente contaminados que estavam à venda em 80 países da Europa, África e Ásia.
Empresa e autoridade atuaram com extraordinária lerdeza e incompetência para resolver o problema. Indícios de que produtos estavam contaminados por salmonela foram constatados em agosto de 2017, e novamente em Novembro. Só que a empresa não alertou as autoridades regulatórias, nem estas estavam obrigada a fiscalizar mais cuidadosamente a empresa. A lei francesa, para pasmo geral, não obriga uma companhia a informar às autoridades sanitárias se contaminação for identificado em seus testes internos.
Os padrões de fiscalização na França, pelo que informa o NYT, são muito baixos. Inspeções gerais ocorrem apenas a cada dois anos, e mesmo assim elas não são abrangentes. Houve mesmo uma fiscalização de funcionários do governo em setembro, quando a companhia já havia identificado a salmonela em seus produtos, “mas os funcionários fiscalizaram apenas uma parte da fábrica, mas não a área de produção dos produtos infantis”.
O choque maior veio agora, quando o dirigente da empresa veio a público ontem (1/2) para admitir que os produtos da Lactalis estiveram expostos à salmonela por mais de uma década.
Observa a jornalista do NYT que o recolhimento de produtos e as trapalhadas ao longo do processo expuseram não apenas lapsos corporativos, mas também deficiências regulatórias “que permitiram que produtos contaminados chegassem às prateleiras dos supermercados e das farmácias, mesmo semanas após a identificação do problema”. O episódio, complementa o jornal “convalida o que críticos têm dito sobre a frouxa supervisão das indústrias de alimentos e os baixos padrões da fiscalização por toda a União Européia”.
O presidente francês, Emmanuel Macron, que nas negociações EU-Mercosul tem brandido a qualidade dos alimentos como uma razão para diminuir as pretensões brasileiras e mercosulinas de maiores quotas de exportação carne, teve desta vez de enfiar o rabo entre as pernas e admitir responsabilidades não só da empresa, mas também de seu governo. A partir de agora, disse, a tolerância será zero nessa área. Aplausos para Macron, mas vamos esperar para ver o que acontece na prática.
A questão da Lactalis é apenas o último de uma série de escândalos relacionados à segurança alimentar que enfrenta a Europa recentemente. No ano passado, milhões de ovos produzidos nos Países Baixos e na Bélgica tiveram que ser retirados do mercado depois da descoberta de estavam contaminados por inseticida. Em 2013, carne de cavalo era vendida como carne bovina na Inglaterra e na Irlanda. Isso para não falarmos do maior de todos, o escândalo da espongiforme bovina, mais conhecida com o caso da “vaca louca”, cuja origem foi também a Irlanda, no mesmo ano de 2013.
Para as autoridades brasileiras fica a sugestão de ampliação da fiscalização dos produtos lácteos da Lactalis importados pelo Brasil, bem como dos produtos elaborados em suas usinas no Brasil.

*Pedro Luiz Rodrigues é jornalista, com atuação em importantes veículos de comunicação, e diplomata.

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