O concerto da inclusão

*José Graziano da Silva

Filha de uma lavadeira negra e pobre, a sambista brasileira Elza Soares, apontada pela BBC como a voz do milênio, explicou assim sua origem humilde em um programa de calouros dirigido por Ary Barroso, em 1953: ‘Eu venho do planeta fome’.
Sessenta e cinco anos depois, em entrevista recente ao jornal ‘Folha de São Paulo’, a cantora se declarou decepcionada com a persistente órbita desse ‘planeta’ entre nós. E expressou um sonho: ‘O filho voltar da escola e dizer à mãe: – Que maravilha! A professora veio. E a merenda estava lá’.
A rigidez das estruturas que reproduzem a pobreza e a desigualdade na América Latina explica a percepção da iniquidade regional como um círculo de ferro. A sensação se agudiza no esgotamento de ciclos de expansão, como agora, quando gargalos de desequilíbrios históricos ganham proeminência em relação a instrumentos e programas desenvolvidos para superá-los. É nessa hora que a determinação política de não permitir o retrocesso assume peso crucial no destino de uma sociedade.
A América Latina e o Caribe estão voltando a crescer depois da recessão do fim do ciclo das commodities. Todos os prognósticos, todavia, apontam para uma expansão média de 2% a 2,5% nos próximos anos – a metade da taxa observada na década de 2000.
Não apenas isso. Entre 2003 e 2008, a renda dos mais pobres cresceu mais que o dobro da dos mais ricos. Cerca de 74 milhões de pessoas deixaram a pobreza e, em 2015, a região se destacou como o primeiro lugar do planeta a cumprir as metas de reduzir à metade a fome e a exclusão social e econômica.
A crise dos últimos anos devolveu 18 milhões de latino-americanos e caribenhos à condição anterior de carência. A desigualdade voltou a crescer, e a fome, depois de quase três décadas de recuos sucessivos, ergueu a cabeça novamente na região.
Entre 2015 e 2016, mais 2,4 milhões de pessoas foram enredadas nas malhas da desnutrição e da subnutrição, totalizando 42,5 milhões de cidadãos que subsistem hoje sem uma dieta suficiente e digna. Outros 130 milhões de latino-americanos e caribenhos persistem abaixo da linha de pobreza.
A música da inclusão, de fato, parou de tocar. Mais da metade dos pobres da América Latina, porém, já haviam afinado suas vidas na progressão da escala da renda: quase um em cada quatro habitantes da região (23%) passou a enxergar o mundo de uma perspectiva melhor. Apenas uma parcela retrocedeu.
Históricos familiares não esquecem sonhos vividos, bem como planos abalroados ou interrompidos. A urna costuma ecoar o saldo dessa memória implacável.Com um desafio adicional: às iniquidades seculares vieram se juntar novos flancos prementes.
A obesidade, por exemplo, não raro associada a deficiências nutricionais em dietas saturadas e gasosas, deixou de ser problema de país rico para ser um problema de todos nós.
Na América Latina e Caribe, a sua progressão é avassaladora: o distúrbio reúne 20% da população adulta e 7% da infância em 20 países. Tornou-se um desafio inadiável da segurança alimentar regional.
A desordem climática é outro grande desafio e atinge o núcleo duro da exclusão. Mais de 40% da população rural na região é pobre; 20% dela não dispõe sequer de uma cesta básica mensal.
Sem meios para elevar a sua produtividade e – simultaneamente – dotá-la de resiliência diante da mutação climática, será difícil reverter a inflexão da fome, independente da taxa de crescimento que se venha alcançar.
Não por acaso, a 35ª Conferência Regional da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), realizada em março, na Jamaica, registrou um comparecimento recorde em 40 anos de presença da FAO na América Latina e Caribe.
Trinta e três países reunidos durante três dias buscaram respostas para uma demanda suprapartidária incontornável: erguer linhas de passagem sobre fendas e trincas escavadas pela desaceleração econômica na região.
Povos e nações que não aceitam mais regredir serão frustrados em seu desejo de avançar se governos e lideranças não ousarem ir além da espera por uma carona no próximo ciclo de expansão global.
Não erra quem enxergar na agenda da segurança alimentar o laboratório avançado de políticas para o desenvolvimento capaz de preencher esse hiato.
Sua pertinência adquire redobrada importância justamente no contraciclo econômico, ao reforçar salvaguardas já existentes e criar outras novas, a contrapelo da fragmentação característica das épocas de crise.
Seria apenas uma agenda de boas intenções, não fosse esse também um teste de sobrevivência da democracia e das lideranças na região.
A música parou, mas o salão continua cheio. No sonho intuitivo da cantora Elza Soares pode estar um dos catalisadores de retomada da partitura inclusiva. A garantia de alimentação escolar através de políticas públicas associadas à aquisição de alimentos da agricultura familiar interliga inúmeras notas do concerto que se busca – do combate à fome ao controle da obesidade, passando pelo incentivo a práticas de manejo sustentável, com redução da miséria no campo e na infância.
Não por acaso esse foi um dos temas de maior atenção na Conferência Regional da FAO, que deixou um recado de alento à grande sambista brasileira.
O ‘planeta fome’ ganhou um concorrente à altura do seu sonho: programas de alimentação escolar encontram-se hoje implantados em 100% dos países da região. Em um terço deles, o suprimento já vem, em boa parte, da agricultura familiar. Milhões de crianças já podem dizer na volta para casa: ‘Tinha merenda’. E era mais saudável, nutritiva e gostosa.

*José Graziano da Silva, diretor-geral da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). Artigo publicado originalmente no jornal Valor Econômico, em 2 de abril de 2018

error: Conteúdo protegido !!